Ouve-se por vezes alguém recordar o respeito devido a uma
farda. A farda de polícia, a farda do bombeiro, a farda do militar. No
tribunal, o juiz até tem o direito de castigar, isto é condenar sem processo algum,
qualquer das pessoas presentes se achar, do seu ponto de vista de pessoa
humana, com todas os defeitos dos humanos, que alguém lhe faltou ao respeito.
Os cidadãos devem uma especial forma de respeito a alguns
titulares de órgãos de Estado, isto é, a alguns dos seus empregados, que os
governantes não são mais que pessoas que contratamos para nos servirem e que
remuneramos de forma principesca. Houve um primeiro-ministro que foi insultado
na Marinha Grande, em 14 de Janeiro de 1986, por um cidadão, presumivelmente do
PCP, e ainda levou um sopapo na cara. A vítima, Mário Soares, apressou-se a
fazer uma lei para proteger de insultos e agressões exclusivamente alguns
funcionários superiores do Estado, como Presidente da República e
Primeiro-ministro. À conta desta lei que Mário Soares fez para si mesmo, um
cidadão que em Elvas insultou o Presidente da República Cavaco Silva esteve a
braços com a possibilidade de ser preso, o que não aconteceu apenas devido à
benevolência do Presidente da República. Como pode, numa democracia, um insulto
ao Presidente da República ou ao Primeiro-ministro ser mais gravoso que o
insulto a um sem-abrigo ou a qualquer outro cidadão?
Um sacerdote deve ser objecto de um respeito que roce a
veneração porque é um homem de Deus. Mas será mais homem de Deus que qualquer
outra mulher ou homem? Por ser sacerdote não mata e não faz os mesmos pecados e
crimes que as outras pessoas?
Os professores são naturalmente pessoas muito consideradas
na sociedade, uma vez que a eles são confiadas as crianças, o futuro e
continuidade dessas mesmas sociedades. Então e os professores que favorecem os
filhos dos amigos ou prejudicam os alunos com quem embirram ou que são filhos
de pessoas detestáveis?
Não é legítimo, a priori,
catalogar uma pessoa, seja qual for.
Conheci um professor catedrático que sustentava a opinião de
que, no primeiro dia de aulas, todos os alunos eram seus inimigos. E tal
conceito só se desvanecia nos casos em que o aluno desse provas verdadeiras de
que não era inimigo.
Não tem sentido classificar as pessoas sobre as quais não
temos conhecimento algum, sejam alunos ou polícias, juízes ou sacerdotes.
Infelizmente os casos de abuso de poder e de corrupção que
vão sendo conhecidos têm levado a sociedade a aperceber-se desta realidade, da
maneira mais dolorosa. Quem pode confiar na justiça de um país em que há casos
de árbitros de futebol corruptos, meninos preferidos do professor, juízes que
vendem sentenças?
Esta matéria tem sido ponderada da forma errada, por
ignorância de uns e aproveitamento de outros.
Na Idade Média, para um mesmo crime, existiam sentenças
diferentes tendo em atenção a classe social da pessoa julgada. Um nobre não
deveria sofrer condenações vexatórias, ao contrário das gentes do povo.
Todos deviam rezar pelas melhoras do rei, ou da rainha, ou
do príncipe, do senhor feudal, mas falar de assistência social para os
indigentes era quase pecado.
A democracia que temos não é essencialmente diferente na
essência, embora o seja na forma.
O ponto de partida para uma sociedade mais coerente tem de
ser este:
É o juiz que dá respeitabilidade ao tribunal e não o
contrário. Mas na cabeça das pessoas é sempre este último pensamento que
existe.
A partir da rectidão e da imparcialidade das decisões do
juiz, o tribunal pode adquirir o estatuto de honesto, de casa de justiça.
Sempre que se constatem casos de corrupção, de venda de sentenças ou de dúvida,
o tribunal tem de ser equacionado enquanto órgão de exercício da lei.
Mas as pessoas, por ignorância, põem na cabeça que se uma
pessoa chega ao cargo de juiz é porque é sábia, honesta, de confiança. De tal
modo que, se em tribunal, aparecer um dos litigantes ou uma testemunha que
trate o juiz apenas por senhor, ou senhora dona, pode ser castigado com multa.
Sim, a democracia levou-nos assim tão longe!
O polícia não é honesto por vestir farda. É apenas um
funcionário público, um empregado de todos, que tem uma função a realizar e que
para isso deve vestir uma farda, como um porteiro, por exemplo. A Polícia não
faz polícias honestos, são os polícias honestos que transmitem a ideia de que a
Polícia é uma entidade amiga e útil na sociedade, que merece respeitabilidade.
O frade não é santo por causa da coroa, nem o padre o é por
causa da batina. Eles mesmo o reconhecem e tomaram a iniciativa de perder a
coroa e caminhar nas ruas identificados pela roupa. Não tem sentido dar o lugar
(ainda há hoje quem dê o lugar a alguém?) no autocarro, na sala de espera, ou
seja onde for, a um padre por causa da batina. O padre é um homem e, como
qualquer homem, tem o dever de dar o seu lugar a uma criança, um idoso, ou a
uma senhora se for cavalheiro (estes são cada vez menos).
Estas considerações atravessam todos os níveis sociais. Se o
varredor de ruas faz ronha, não cumpre a sua missão e descarrega para os colegas,
é tão devasso como o juiz, o padre e os outros da nossa história.
Devemos respeitar a pessoa e não o lugar que ocupa. E em
caso de prática desonesta, devemos culpar a pessoa e não a classe.
E as famílias… Ah! As famílias! As boas famílias!
Lembro-me quando os meus filhos frequentavam o colégio
primário. As boas famílias a que o director se referia, quando delas falava,
eram as que não se atrasavam na mensalidade. Quando as crianças chegavam ao
quarto ano e passavam para o ensino intermédio, aí então ficava-se a saber
mesmo quem eram as boas famílias. A criança de uma família de ateus e rica
conseguia facilmente referências e era admitida num colégio católico. Uma
família católica mas sem a tal referência de boa família jamais conseguia que a
sua criança fosse aceite.
Anda muito enganada a sociedade humana. A democracia não se
dita, não se implementa. Germina e desenvolve-se dentro do coração das pessoas
e exige destas uma inteligência grande para avaliarem o que deve ser avaliado e
desconsiderar o que não deve ser levado em conta.
Orlando de Carvalho
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